Quando tinha doze anos, o meu melhor amigo, o menino pelo qual eu era apaixonada, com o qual passava tardes lendo gibi e jogando algum vídeo game que eu detestava (detesto vídeo game), disse que eu nunca seria uma mulher. O anúncio foi feito desse jeito, sem nenhum titubeio, no primeiro dia em que fomos ao shopping sozinhos. A nossa turma do colégio era razoavelmente grande. Nossas mães nos autorizaram a comer e passear por aquele prédio cheio de lojas e restaurantes a céu fechado. Nós passamos por uma loja de música que vendia fitas cassetes e ele lançou essa frase na frente dela, me capturando permanentemente. Ele ainda acrescentou que eu não tinha peito e nem bunda, era uma tábua lisa e, portanto, não era uma mulher. O que ele disse causou uma dor que eu sentiria diversas vezes ao longo da vida. Diante de sua pequenez como ser humano, resta ao homem nos diminuir. Foi isso o que aconteceu aquele dia no shopping.
Aconteceu mais uma vez com o mesmo melhor amigo quando nós fizemos cursinho para ingressar em uma escola técnica. Um rapaz sentado ao meu lado puxou conversa comigo. Ele queria saber mais sobre o livro que eu estava lendo. Era um rapaz de olhos castanhos curiosos. Foi a primeira vez que um homem se interessou por mim. Eu estava feliz por perceber que poderia, sim, ser mulher (ainda precisava da aprovação masculina) quando o meu amigo me cutucou e disse: dá para você ficar quieta? Eu emudeci. Ao final da aula, ele acrescentou: por que você não ficava quieta? Aliás, por que você está cheirando mal? Eu diminuí de tamanho. Será que eu tinha me esquecido de tomar banho? Durante o ensino médio, foquei exclusivamente no vestibular. Só estudava literatura, gramática, história, geografia, inglês e redação. Tive um namoradinho que eu mesmo dispensei porque precisava ocupar a cabeça com Clarice Lispector. Tive outro namoradinho que tinha medo de mim e não conseguiu nem me dar um beijo. A faculdade, entretanto, foi cruel. O meu primeiro namorado de verdade terminou comigo dias depois de eu questioná-lo sobre o porquê de eu não conseguir sentir o amor dele por mim (mais sobre esse figura abaixo). Tive muitos rolos e fui punida socialmente pelos homens por ser clara sobre o meu interesse, por dançar, por beber, por ser livre. Algumas mulheres me puniram também. Tive um namoradinho que sumiu um mês e terminou comigo no dia do meu aniversário porque (adivinhem) tinha medo de mim. Não deve surpreender o leitor deste texto que eu tenha me casado com um homem física e emocionalmente abusivo. A minha formação como mulher se deu a partir do julgamento masculino. Não havia o feminino dentro de mim sem levar em consideração o masculino fora de mim. Foram anos sofridos até o dia em que eu me libertei de tudo: do marido, do julgamento, do masculino como um todo. Fui livre, inclusive dentro de um relacionamento saudável. Encontrei um parceiro que quase me enxergou e que não me diminuía. Por ele ter quase me enxergado, tornamo-nos amigos. Mas mesmo ele me diminuiu. Foi com esse homem que eu aprendi a amar. Disse a ele como isso aconteceu. O que eu aprendi, ao que eu sou grata. Não houve resposta a não ser “sim”. Só eu aprendi, só ele me deu. Da não-resposta, do não-diálogo devo inferir que não deixei legado algum? O não-diálogo, aliás, foi como o meu primeiro namorado, aquele lá de cima, me diminuiu em um revival que nunca deveria ter acontecido. Ele se dizia apaixonado e fazia muitos planos. Houve um desentendimento e ele desapareceu. Será que eu inventei o relacionamento com ele? Não sei quantas de nós fomos moldadas na forma masculina, essa forma que insiste em nos diminuir, nos fazer de saco de pancada emocional, que nos deixa duvidando de nós mesmas. Talvez todas nós, de um jeito ou de outro, tenhamos sido moldadas assim. Isso aparece muito nos livros da Elena Ferrante. Como a protagonista de “The Lying Life of Adults”, a opinião do meu pai sobre mim importava muito mais do que a da minha mãe até eu me libertar do masculino. Hoje a opinião dos dois tem peso igual. Por que o masculino tem esse peso? E por que aceitamos que o masculino nos diminua ao longo da vida? Em nome de quê? Volto à Elena Ferrante. Já disse isso muitas vezes: a personagem mais forte da série napolitana é Lila Cerullo. O masculino tentou moldá-la desde pequena. Lila apanhava do pai. Foi, aliás, jogada da janela de sua casa pelo próprio pai. Foi desejada pelos homens de todo o bairro. Foi espancada pelo marido. Foi detonada emocionalmente por Nino Sarratore. Mas Lila chega ao final da série não só sendo a menina forte que era quando criança mas também a mulher que mete medo no bairro todo, em mulheres e homens. Lila não se deixou moldar nem pelo masculino e nem pelo próprio feminino (já que o exemplo feminino em Nápoles era o de submissão). Lenù se adequa ao universo masculino constantemente ao longo da série. Lila rejeita esse universo e se constrói a partir da sua própria forma. A força de Lila é algo extraordinário. Se você chegou até aqui e é mulher, é isso o que eu desejo para você, para mim, para todas nós: façamos as nossas próprias formas. Elena Ferrante escreveu livros para nos mostrar que isso é possível.
0 Comments
Leave a Reply. |
AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
Categories |