Em texto para a Folha de S. Paulo, eu e Mario Sergio Lima argumentamos que a melhor estratégia para combater os poderes excessivos do presidente da Câmara dos Deputados é fazer trabalho de oposição na base eleitoral daquele que ocupa esse cargo. Nosso argumento é ancorado no trabalho de E. E. Schattschneider, segundo o qual o resultado dos conflitos políticos são determinados pelo seu grau de contagiosidade. Como escrevemos no texto, a política não funciona como um jogo de cabo de guerra (em que só a força de uma das partes determina quem ganhará a disputa); quem assiste ao conflito também determina o resultado.
Entretanto, algumas pessoas apontaram que seria inócuo levar o trabalho de oposição para a base eleitoral de Arthur Lira, o atual presidente da Câmara. Isso porque o eleitor em Alagoas não se preocuparia com os mandos e desmandos de Lira, mas sim com as benesses que recebe via emendas orçamentárias (legais e ilegais). A crítica é bem fundamentada. A literatura em ciência política aponta o baixo nível de desenvolvimento econômico como uma das condições para a existência de clientelismo. Faz sentido: em um país em que muitas pessoas vivem com o mínimo de dinheiro, os recursos das emendas orçamentárias representam ganho concreto e significativo. Um brasileiro que mora município de Inhapi (AL), cujo índice de desenvovlimento humano é baixíssimo, não se importará com esquemas de corrupção de Lira se o seu município acaba de ganhar do mesmo uma ambulância. Mario e eu pensamos em “trabalho de oposição” como embarcando uma série de ações. A princípio, seriam atividades de contestação: protestos, outdoors e até shows como o que Caetano Veloso fez no Congresso em março para impedir a aprovação de um projeto de lei. Mas também consideramos que organizações da sociedade civil poderiam empenhar esforços em campanhas de educação cidadã. O ideal seria que esse trabalho fosse feito pelo Estado. Mas é difícil até pensar em levantar essa discussão diante do desmonte do Ministério da Educação no governo Jair Bolsonaro. O brasileiro médio pouco sabe como funciona o sistema político de seu país: o que é o pacto federativo, qual ente federado é responsável por que parte de seu cotidiano, como o voto dele para deputado federal, estadual e vereador se traduz no dia-a-dia, etc. Uma organização com a 342 Artes teria braço pensar em uma ação localizada de educação cívica em municípios que são relevantes para a reeleição de Arthur Lira. Faço esse argumento com base na literatura de ciência política*. A ideia de que o clientelismo está associado a baixos níveis de desenvolvimento socioeconômico aparece no trabalho de Samuel Huntington já em 1968. Literatura mais recente explora a relação entre educação e/ou educação cívica e clientelismo e/ou compra de votos. De acordo com esses autores, a educação mina a compra de votos porque eleitores com níveis educacionais mais altos estão mais equipados para enxergar problemas sistêmicos e têm mais informação política para discutir os custos sociais dessa prática. Deixo mais referências sobre trabalhos que exploram esse tema abaixo. O que eu estou sugerindo vai dar certo? Não sei. Mas eu sou da turma que acha melhor tentar e dar errado do que não tentar e nunca saber o resultado. Referências Carlin, R. E., & Moseley, M. W. (2021). When Clientelism Backfires: Vote Buying, Democratic Attitudes, and Electoral Retaliation in Latin America. Political Research Quarterly. https://doi.org/10.1177/10659129211020126. Fox, Jonathan. 1994. “The Difficult Transition from Clientelism to Citizenship: Lessons from Mexico.” World Politics 46 (2): 151–84. Greene, Kenneth F. 2021. “Campaign Effects and the Elusive Swing Voter in Modern Machine Politics.” Comparative Political Studies 54 (1): 77–109. Pedro C. Vicente, Leonard Wantchekon, Clientelism and vote-buying: lessons from field experiments in African elections, Oxford Review of Economic Policy, Volume 25, Issue 2, Summer 2009, Pages 292–305. Stokes, Susan C., Thad Dunning, Marcelo Nazareno, and Valeria Brusco. 2013. Brokers, Voters, and Clientelism: The Puzzle of Distributive Politics. Cambridge: Cambridge University Press. Vicente, Pedro C. 2014. “Is Vote Buying Effective? Evidence from a Field Experiment in West Africa.” The Economic Journal 124 (574): F356–87. *Outros fatores podem explicar a transição da política clientelista para a política programática, como configurações e timing da formação do Estado, instituições, arranjos de economia política e ideologia. Um resumo muito bom dessas perspectivas está neste artigo de Herbert Kitschelt. Obviamente essas visões não são mutuamente exclusivas. O meu próprio trabalho sugere o aparecimento de política programática na arena legislativa a partir da interação entre instituições e ideologia.
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Tenho pensado muito sobre a minha família desde que a minha avó Odete se mudou de sua casa em Peruíbe para uma casa de repouso em São Paulo. Passei um mês em São Paulo entre dezembro e janeiro e pude visitá-la algumas vezes. Em uma dessas visitas, perguntei o que ela estava fazendo com tanto tempo livre. “Eu penso na minha vida”, ela disse. “Você pensa no vô?”, indaguei, ao que ela respondeu, “No seu avô e em tudo o que eu vivi”. Recebi a resposta dela com uma tristeza que não compreendi. Foi em busca de respostas para essa tristeza que peguei um calhamaço de fotos antigas e trouxe comigo para cá. São fotos da casa dela no Campo Limpo, de reuniões de família, de mim e do meu irmão do meio pequenos, do meu avô – muitas fotos do meu avô. Tenho passado manhãs e noites olhando para essas fotos e escrevendo sobre o meu avô. Ernesto Policicio era o nome dele, mas nós o chamávamos de Bolão por conta da barriga de chope (e ele então apelidou a minha mãe - que não tinha barriga de chope - de Bola). Meu avô era, na média, um sujeito quieto e solitário. Passava parte do tempo sentado no murinho da casa dos meus avós ouvindo jogo ou música sertaneja no seu radinho de pilha. A outra parte ele passava em um quartinho na laje que abrigava um barril de cachaça e tranqueiras (ninguém lembra o que eram). Às vezes, jogava dominó com o pessoal da borracharia em frente de sua casa. De vez em quando, ele perdia as estribeiras. Uma vez, o cachorro dele (Neco ou Zulim, o nome variava de acordo com o dia) foi atacado por outro na rua. Ele entrou fulo da vida em casa pronto para pegar uma arma. “Onde o senhor vai, seu Ernesto?”, meu pai perguntou. “Vou matar aquele cachorro filho da puta que atacou o Neco”, ele esbravejou. Ainda bem que o meu pai estava lá para evitar a tragédia canina. Outra vez minha mãe, ainda pequena, estava no banheiro tomando banho, e meu avô precisava fazer o número dois. “Ai meu deus do céu, ai minha virge maria, sai do banheiro, Bola!”, ele implorava na porta do banheiro, como se o mundo fosse acabar. Ele cultivava curiosidade sobre o mundo. Trabalhou como mecânico por anos, mas o desejo de ter um salário melhor fez com que ele se esforçasse para ser fiscal de feira da prefeitura de São Paulo. Tinha uma máquina fotográfica que usava para registrar a sua vida. Queria viajar com o passaporte que tirou na década de 90, inclusive para a Itália, de onde a família dele (complicadíssima, parte da qual se suicidou) vem. Voltou para a escola para completar o ensino médio aos 50 anos e terminou o supletivo cheio de orgulho. O lado doce dele poucos conheceram. Vovô comprou um gravador de fita cassete com microfone para eu e meu irmão cantarmos nas tardes em que ficávamos com ele. Vovô também gostava de Natal porque via magia nas músicas natalinas. Vovô se emocionava ao ouvir a música “No Woman, No Cry”, de Bob Marley. Vovô gostava de me ver comendo e dizer “mangia che te fa bene!”. Quando minha mãe teve o terceiro filho, vovô a acalmou: “filha, eu fico com o Tutu do jeito que fiquei com o Gui, você vai poder continuar trabalhando”. Não deu tempo de ele cuidar do Tutu. Um dia, a asma e a bronquite o levaram para o hospital. Voltou de lá branco, quase transparente. Colocaram-no para dormir na sala da casa dos meus avós. Ali, ele me chamou e pediu gelatina colorida. A última imagem que eu tenho dele é esta: eu aos nove anos com os meu braços pequenos e finos entregando um copo de sobremesa com gelatina colorida para ele. Nunca mais o vi. Um dia ele existia, no outro deixou de existir, e eu fiquei aqui, nessa terra, sem o avô que eu tanto curtia ter. Em uma das fotos que eu trouxe comigo, estou comendo bisnaguinha e bolacha Maizena enquanto ele lê o jornal na sala da casa dos meus pais. Não sei dizer quantas horas já passei olhando para essa foto. Ontem, olhando bem para ela, tentei decifrar o meu avô: as frustrações que as linhas do rosto dele escondiam; o gosto pela solidão (será que é hereditário?); a relação dele com a bebida; o casamento aos trancos e barrancos com a minha avó; a inquietude que ele carregava mas não mostrava; o sentimento dele em relação à própria família; o significado de ser pai de dois filhos (minha mãe e meu tio) tão diferentes; e a expectativa dele para o futuro para além de morar na beira da praia. Só então entendi a tristeza que senti quando ouvi a minha avó na casa de repouso: ao contrário dela, que permanece viva até os 84 anos, o meu avô não teve a oportunidade de pensar sobre o que viveu. Ele deixou de existir subitamente aos 65 anos, e com a sua ida, apagou-se a sua trajetória sem que ele pudesse pensar sobre ela. Por isso eu trouxe as fotos de família comigo. Por isso eu escrevo sobre ele. Lá de cima, vovô está pensando sobre o que viveu através de mim. |
AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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