Na semana passada, um amigo mencionou o texto abaixo, que escrevi para a revista Getulio em 2007, como um dos melhores textos que ele já leu. Não sei se isso é verdade, mas gostei bastante de reler as histórias dos taxistas com os quais conversei. Às vezes, quando penso nos meus anos de reportagem de rua, pergunto-me onde estão as pessoas que entrevistei durante a minha carreira. Será que Adalberto ainda é taxista? Será que os alunos que descrevo abaixo realmente viraram taxistas? Difícil saber. Afinal, nosso trabalho como jornalista é o de contar as histórias dessas pessoas em determinados momentos de suas vidas. Retratamos as vidas de anônimos apenas em flashes. Este é o registro que fiz sobre os taxistas paulistanos naquele 2007, ano em que ainda era possível sentar em um táxi sem precisar discutir preferências políticas. Sexta-feira chuvosa em São Paulo. Seis e meia da tarde, o trânsito para em Pinheiros, zona oeste. 3,6 milhões de automóveis andam com a primeira marcha engatada. Há 15 pontos de alagamento na cidade. As plataformas do metrô estão abarrotadas. Em frente ao metrô Vila Madalena há um ponto de táxi. Uma esticada de mão é suficiente para um Honda Fit novo aparecer. “Vou até a General Jardim, sabe?” Cássio tem pinta de malandro. Com dois minutos de corrida conta sobre quando “um passageiro entrou no meu táxi uma vez e me seqüestrou junto com o veículo. O assaltante ameaçou atirar, eu me desdobrei, segurei a roleta do revólver calibre 38 e não deixei”. Ele sempre sabe quando vai ser assaltado. Cássio não negocia o preço das corridas, porque isso seria menosprezar seu trabalho. Não é qualquer taxista que investe R$ 1.800 em um mapeador eletrônico da cidade de São Paulo, capaz de achar qualquer endereço e o melhor trajeto no menor tempo possível. Um pequeno cartão transparente traz um adesivo colado em forma de aviso: não use drogas. “Vira e mexe um camarada entra no meu táxi querendo cheirar coca!” Terça-feira, fim de tarde em São Paulo. Pressa para chegar em casa. Aceno na rua Joaquim Antunes e um Golf encosta. Paulo é um cronista nato. “Sabia que esta rua aqui tem mais de 90 cachorros?” Todos os moradores são ricos, não têm o que fazer e compram um, dois, três cães. Passeiam pelo lugar o dia todo. Já tinha perdido as contas de quantos animaizinhos tinha visto em frente ao prédio mais caro. Ah, ele gosta de bichos, mas é difícil cuidar, não é? Taxistas, a princípio, são motoristas, trabalhadores e pais ou mães de família. Mas podem ser também secretários, amigos, terapeutas, parceiros de droga, economistas frustrados, mineiros, baianos, cearenses, recém-chegados à capital e perdidos nas ruas, apreciadores de Bruno e Marrone ou Nancy Sinatra, apaixonados por namoradas frias, piscianos, taurinos, alvo de calotes, camaradas no preço, ex-donos de restaurante, ex-motoristas particulares... São contadoresde histórias que preenchem o vazio entre o banco da frente e o de trás. Os causos são muitos. No rádio Passageiro na praça dos Omaguás, PA4 alguém no QAP? Passageiro na praça dos Omaguás à disposição. PA4113, no QAP, próximo ao local. Passageiro na praça dos Omaguás, em frente à Fnac Pinheiros, o nome do passageiro é Beatriz Rey, código 1706, repito, 1706. O QRU é 72655. Em quanto tempo? Ok, 13 minutos até o local! Adalberto não sabe bem quantas vezes por dia ouve um chamado como esse da rádio-operadora da São Paulo Táxi. Atende, no mínimo, 17 clientes. Quando não está no PA4, um dos 38 Pontos de Apoio da cooperativa, ele transita com seu Palio Weekend branco 2006, unidade 113, por ruas quaisquer. Mesmo se não estiver em seu ponto, as corridas são garantidas pelo rádio-táxi. Por volta das 20h30 de uma quinta-feira, Adalberto busca seu 19º passageiro – sem imaginar que ela o espera há mais de 20 minutos, que naquele horário completava 12 horas de trabalho, que ela ainda precisa lavar roupa, sente saudade de casa e está mal-humorada. Com voz de locutor de rádio AM, o taxista entoa um “boa noite” capaz de animar qualquer beatriz. O alagoano de Murici acha que sua profissão deve extrapolar a simples condução do passageiro. Se percebe uma dificuldade do cliente, oferece uma solução. Dizer “não” seria má vontade. Além de quebrar o gelo dentro do carro, ele quebra galhos: encontra um caixa eletrônico mais perto, acompanha passageiros ao médico, procura peças de carro, jardineiros ou eletricistas para clientes, espera um homem distinto que tem reunião às 7h cortar o cabelo antes da corrida – taxímetro desligado durante shampoo, tesouras e gel. O dia de Adalberto começa às 5h30, quando sai de sua casa na Freguesia do Ó, e termina às 22h – com exceção das terças-feiras, dia em que guarda seu Palio mais cedo para namorar. “Não esqueço o dia em que uma mulher entrou no meu carro e me pediu para seguir seu marido, porque achava que ele a estava traindo. Comecei a convencê-la a não fazer isso, tinha que se valorizar. Em dez minutos ela desistiu!” Adalberto ri. Seus olhos verdes chamam atenção. Mas é difícil enxergá-los, já que há uma antiga convenção de que o passageiro deve ir atrás. Isso não impede alguns homens de dar “cantadas” no taxista. “Eles sempre perguntam se sou casado. Querem ver como vou reagir e tal! Digo que não é por aí, mas levo numa boa!” Formado há 14 anos em economia pela Faculdade Santana, ele não exerce a profissão por falta de oportunidade. Escolheu o táxi em 1991 porque buscava estabilidade financeira. Mas isso não significa que não gosta do que faz. “Eu amo! Adoro conversar com pessoas diferentes todos os dias! Tanto que fiz curso de Relações Interpessoais, Ética, Vendas e Atendimento ao Cliente e seis meses de inglês!” Na lataria de seu carro está estampado o logotipo da cooperativa à qual é filiado, a São Paulo Táxi. Há dez anos no sistema de rádiotáxi, ele avalia que essa é a melhor maneira de ser taxista. “95% dos meus passageiros vêm da cooperativa. O rádio fica sempre ligado. Tiro mais ou menos R$ 2.500 livres por mês.” Para entrar na São Paulo Táxi é necessário ter os dois documentos básicos exigidos de qualquer taxista: um Alvará de Estacionamento, licença emitida pela prefeitura, e o Condutax, cadastro pessoal e intransferível que habilita o interessado a exercer a atividade. O mínimo de experiência é um ano. Para obter o Condutax o cidadão deve apresentar no Departamento de Transportes Públicos seu RG, CPF, CNH Profissional, comprovante de residência, certidões de distribuição e execução criminal e seu certificado de conclusão do Curso Especial de Treinamento e Orientação para taxistas, oferecido em auto-escolas. É difícil obter um alvará. A prefeitura não emite alvarás há cerca de dez anos e não tem intenção de colocar novos na praça. Há 32.766 alvarás válidos na cidade. 3.500 estão com as frotas de táxi, pessoas jurídicas com autorização para explorar o serviço. Como não há previsão de novas emissões, a saída é procurar alguém que queira transferir a licença. Por lei, essa transferência não pode envolver dinheiro. Na prática ele é vendido, não transferido. O mercado dos alvarás gira em torno de quantias grandes. Alguns taxistas entrevistados afirmaram que o mais caro pode chegar a R$ 45 mil. O consenso é que alguns compram, outros vendem e pouco se fiscaliza. Com os dois documentos em mãos, o interessado é analisado por um psicólogo da São Paulo Táxi, que avalia o estresse, comportamento, conhecimento gerais e de ruas e regiões de São Paulo. O diretor-presidente da empresa, Jorge Spínola, diz que o candidato responde também a um questionário interno, que avalia, entre outras coisas, se o candidato tem boa postura no atendimento aos clientes. O carro deve ser novo, no mínimo de 2005, e com quatro portas. Preenchidos os pré-requisitos, o taxista assina um contrato com a cooperativa concordando em pagar uma mensalidade de R$ 450 para ter direito a ser sócio cota-parte. Isso significa ser dono de uma espécie de título da cooperativa. Essa “ação” permite ao taxista usufruir de todos os benefícios, incluindo a carteira de clientes, que a São Paulo Táxi oferece. Além de 38 pontos espalhados pela cidade, a cooperativa tem hoje 230 taxistas, 8 rádio-operadoras, 32 telefonistas, uma secretária, uma faxineira, três pessoas trabalhando no administrativo, três pessoas trabalhando na diretoria, uma psicóloga terceirizada e um presidente, Jorge. 700 empresas contatam diariamente a cooperativa em busca de um meio de transporte. A São Paulo Táxi fornece vouchers de pagamento aos clientes. A média é de 500 boletos mensais por empresa. Eles são preenchidos como cheques pelos passageiros e entregues ao motorista, que os encaminha à base da São Paulo Táxi. As faturas de cada cliente são pagas no banco e a cooperativa repassa o valor integral a seus motoristas. Jorge deixa bem claro que sua entidade não tem fins lucrativos. As despesas da cooperativa são rateadas entre os 230 motoristas em forma de mensalidade. Adalberto revela outra vantagem do sistema de rádio-táxi: evitar assaltos. “Como você pega passageiros que ligam para lá, é muito difícil pegar um pilantra”. Um risco que a empresa corre é de assinar contrato com uma empresa golpista. “Várias empresas-fantasmas já tentaram nos contratar, mas na primeira conversa já pego se é picareta!” O taxista já fez parte também do Conselho Fiscal da São Paulo Táxi. Tentou unir sua formação acadêmica à opção profissional. Acha que o representante da sua categoria, o Sindicato dos Taxistas, deveria promover cursos interdisciplinares. “Vejo taxista por aí administrando tão mal suas finanças. Eles contam 30 dias para ver quanto ganham. Mas nem todos trabalham do mesmo jeito de fim de semana.” Na auto-escola O professor escreve seu nome na lousa: Marco Antônio. Os tópicos daquela segunda-feira são Administração e Qualidade e Legislação Específica do Táxi. No dia seguinte, mais Legislação. Na quarta ele já avisa, tem prova. “Ah, se der prova eu vou brigar com você!”, diz Edgar. Marco Antônio vira o rosto para um homem beirando os 40 anos, cujo cabelo grisalho é escondido pela máquina dois de seu barbeiro. Edgar veste uma camiseta pólo azul-celeste e calça jeans onde pendura seu celular. Funcionário de uma empresa de manutenção de elevadores, veio direto do trabalho para a aula que o habilitará taxista. O curso exigido pelo Departamento de Transportes Públicos – que deveria atender a questões de legislação e administração – transforma-se no espaço onde os futuros taxistas aprendem alguns macetes do ofício. A prefeitura autoriza auto-escolas a ministrar as aulas. Sento-me numa segunda-feira à noite na auto-escola Jóia, em Perdizes. Depois das 18h30, os carros que passam pelo local dão lugar ao nada. Ninguém circula pelas redondezas da Jóia a não ser seus alunos. Há 20 deles, todos homens. “Seu táxi é uma empresa! Precisa ter planilha de custo, planejamento...” O professor se cala enquanto desenha uma tabela na lousa: duas colunas separam as entradas e saídas de dinheiro. Ele continua. “Isso é para quem tem táxi comum. Quem trabalha em frota aluga o carro deles e acorda devendo uns R$ 90 para a empresa! Mas eu sugiro que vocês comecem na frota! Vai que não se adaptam ao serviço?” A explicação é interrompida: “Posso trabalhar 24 horas para ganhar mais dinheiro?”. “Se você tem seu próprio carro, pode, mas ninguém agüenta isso”, o professor responde. “Voltando à nossa planilha: procurem sempre lugares mais baratos para comprar óleo. Coloquem peças de qualidade. Nada de made in China!”. “Professor, por que nenhuma oficina gosta de taxista?”. “Porque todo taxista quer as coisas para ontem, é chorão, traz peça ruim. Se o carro não fica bom, põe a culpa no mecânico!” Marco Antonio continua a aula: “Vocês precisam oferecer diferenciais. Por que não deixar balinhas no carro para os passageiros? Mas não adianta oferecer o Estadão para um cliente da zona leste! Tem que perceber o público que você vai atingir! É dez vezes mais barato manter um cliente do que perdê-lo.” Edgar interrompe: “Um amigo meu pegou um americano que queria comer comida brasileira. O cara levou o gringo na casa dele. Toda vez que ele volta ao Brasil, liga para meu amigo!” Outro aluno conta história: “Uma empresa usava uma cooperativa de táxi e veio uma reclamação para o presidente de que o taxista tinha passado a mão na secretária. O executivo chamou o coordenador do ponto, que negou tudo, em vez de pedir desculpa. Não foi humilde, dançou e perdeu o cliente.” Marco Antonio ouve uma pergunta no meio da balbúrdia: “Quando o taxista morre, o alvará vai pra quem?” A resposta: “Vira patrimônio e vai para o inventário. O Condutax, no entanto, é um cadastro pessoal e intransferível que te habilita a ser taxista. Você tira depois de sair daqui e só vale no seu município. “Mas, professor, e se eu levar um passageiro ao aeroporto de Guarulhos?” “Tudo bem, porque você o pegou em São Paulo. Mas se um taxista de lá quiser buscar passageiro aqui, não pode. Só se foi previamente contratado. Não vale acordo verbal. Sabe o que não pode também? Pegar passageiro a 100 metros do ponto de outros taxistas.” O professor instrui: “Vocês sabem que precisam de uma foto 2x2 pra tirar o Condutax, né? Mas não vão fazer como os motoboys que pegam uma 3x4 e cortam com a tesoura para diminuir. Vem um monte de foto de gente sem orelha!” Edgar ri: “Mas a orelha é o de menos, ele usa capacete!” A piada de Edgar é interrompida pelo sinal. Hora do intervalo para os alunos, fim do meu período dentro da sala. Diversas rodinhas de pessoas se formam fora da auto-escola. Raul, 39 anos, está desempregado há seis meses. Baixinho, um pouco acima do peso, me pede indicações de emprego. Seu último serviço foi como comprador, mas gosta mesmo é de edição e restauração de imagens. Investiu no táxi para ter uma alternativa caso não consiga trabalho nessa área. Wilson, 24 anos, estudante de Engenharia Mecatrônica, freqüenta as aulas apenas para alugar o alvará – algo que conseguirá depois de obter o Condutax. O sinal bate. Os alunos voltam para a sala, menos um magérrimo, de cabelos brancos e fala calma. Luiz beira os 60 anos. Paro ao seu lado. “Sabe por que tô aqui? Um amigo pagou para mim”, começa. “Ah é?” “Sou desempregado. Estou na fila do INSS para pegar auxílio-doença. Era motorista duma empresa, deu problema na mão, desligamento dos tendões. Tive de sair.” “Nossa! Mas melhorou?” “Comecei fisioterapia hoje. Minha mulher não trabalha, tenho um filho, 14 anos. Preciso do dinheiro do INSS. Fui despejado, sabia?” “Deus! Quando?” “Assim que fui demitido. Deram um mês pra sair. Fui para uma casa menor, 300 reais de aluguel. Tomo seis remédios além da injeção”, diz. “Você não pode trabalhar com algo que não precise da mão?” “Filha, não consigo nem preencher ficha de emprego, nem dá para escrever meu nome.” Suspira fundo, abaixa a cabeça. “Mas sou evangélico. Deus me ajudará.” Meneio positivamente a cabeça. Encostada no carro, observo esse senhor de camiseta branca se perder dentro da auto-escola. Os causos estão vivos.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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