O legislativo nasceu em mim há onze anos. Na minha vida anterior, escrevi uma reportagem discutindo projetos de lei que tratavam da violência contra professores brasileiros. Um dos projetos chamou a minha atenção pelo cuidado com o qual lidava com o tema: o do senador Paulo Paim, que anos depois eu veria no plenário do Senado enquanto fazia pesquisa de campo para a minha tese de doutorado. Li o projeto e fiquei encantada com a possibilidade de resolver os problemas do mundo com a letra, o rito, a discussão e a decisão majoritária. Na reportagem, um especialista educacional diz que não se resolveria a violência docente com a edição de leis, mas o estrago em mim já estava feito: depois de ler o projeto de Paim, a ação legislativa passou a ter contornos mágicos na minha cabeça fabuladora de realidades. Fabulei sobre o legislativo durante os anos seguintes, até mesmo quando estudei o teorema da impossibilidade de Kenneth Arrow para os exames do doutorado (que põe em xeque a própria existência da arena legislativa). O Congresso se tornou um lugar mágico no meu imaginário de cientista social. Detectar um problema social, procurar uma solução para ele, escrever a solução em termos legais, encaminhá-la para diversos grupos de debate até ela ser votada por um grande grupo, um grupo formado por pessoas obrigatoriamente distintas e que precisam concordar sobre alguma parte da solução. Sei que processos assim, motivados pelo espírito público, são raros. Mas que apenas um processo desse tenha existido na história do mundo é algo que me coloca atrás de respostas sobre como mais deles possam existir. Foi em busca delas que escrevi uma tese de doutorado sobre o que explica a eficácia legislativa dos deputados brasileiros. Entre 2018 e 2019, passei quase seis meses na Câmara dos Deputados conversando com parlamentares e suas equipes, acompanhando reuniões de comissões, entrando e saindo do plenário, participando de reuniões com o presidente da Câmara (à época, Rodrigo Maia), lendo o Regimento Interno, indo em almoço de bancada temática e muitas vezes só andando pelos corredores dos anexos na esperança de me integrar fisicamente ao processo legislativo. Fiz o mesmo caminhando por dentro das comissões e do plenário. Sentei no salão verde em frente ao plenário e olhei para a movimentação de pessoas entrando e saindo enquanto falavam e alinhavavam. Na semana em que escrevo este texto, estou concluindo sete meses de trabalho como assistente legislativa de um deputado democrata na House of Representatives dos EUA. Ali me dediquei a aprender sobre um processo legislativo regido a regras e estruturas diferentes. Fui feliz no dia em que entendi o papel do Rules Committee (e quando concluí que uma comissão dessa seria inviável no contexto brasileiro). Mas fui feliz em tantas outras ocasiões. Trabalhei com emendas orçamentárias. Escrevi memorandos para guiar o meu deputado a falar com a imprensa. Escrevi um op-ed que ele assinou. Monitorei proposições em comissões e no plenário. Dei recomendações de voto diariamente. Participei de uma conversa com ele sobre se ele deveria ou não co-autorar um projeto de lei. Recomendei que ele co-autorasse diversos outros e que assinasse cartas chamando a atenção para problemas sociais. Falei com grupos de interesse e com eleitores. Visitei a sua base eleitoral. Propus uma emenda a um projeto de lei em nome dele (que infelizmente não foi para frente). Terminava todos os dias de trabalho cansada - a curva de aprendizagem é intensa e enorme - mas feliz, muito feliz. Fui feliz também entrando todos os dias no prédio do Congresso, que é um labirinto. Me perdi diversas vezes até decorar os caminhos para o gabinete, a cafeteria, o estacionamento. Andei no metrô que une os anexos até o plenário. Não pude entrar no plenário, mas caminhei pelos arredores da rotunda e debaixo da própria rotunda, onde passei algumas tardes. Olhei para tudo por todos os ângulos como se esperasse o processo legislativo se manifestar fisicamente diante dos meus olhos. O processo legislativo: essa ideia abstrata que, na verdade, significa o nosso processo, o processo pelo qual nós decidimos quais leis regirão o comportamento da sociedade em que vivemos. Há uma cena no seriado Borgen em que um político diz: “We forget that the bills are us. We are the law. The law is us”. Meu fascínio pelo legislativo está no espelho: ele reflete o que somos. Em Brasília, pude observar nós mesmos dentro do processo legislativo. Nos EUA, pude ser eu mesma o processo legislativo. Termino esse período mais encantanda pela contradição que define o legislativo: ele é a nossa lástima com o potencial de ser a nossa saída. Espero poder estudá-lo cada vez mais para entender em quais circunstâncias ele toma contornos de saída.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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