Ontem a minha família passou um tempo discutindo o que faria diante de uma invasão alienígena no grupo do WhatsApp. As notícias de objetos não identificados vêm dos Estados Unidos, da China, do Canadá e do Uruguai. Meu irmão do meio disse que atacaria os invasores caso eles quisessem levar a minha sobrinha Bela. A minha mãe radicalizou e anunciou que o sonho dela é ser abduzida. Enquanto isso, eu só conseguia pensar que gostaria de substituir os seres humanos por extraterrestres. Diante da possível (mas improvável) invasão alienígena, percebi que não me sinto habitante deste mundo. Eu queria que o sentimento fosse de nostalgia. Como aquele tão bem descrito por Woody Allen em “Meia-Noite em Paris”. O estranhamento seria só temporal. “Deveria ter nascido na década de 20”, eu diria, “ou de 30 ou de 40”. Infelizmente, trata-se de sentimento mais extenso e profundo. O deslocamento tampouco é geográfico. É verdade que me sinto em casa em Lisboa (e que tive um choque ao sair de lá e voltar para os Estados Unidos na semana passada). Mas mesmo lá senti estranhamento ao meu redor. O deslocamento é em relação às pessoas. Talvez eu esteja despreparada para viver em um mundo que se tornou superficial em todos os sentidos. Vejam: eu cresci lendo. As minhas ideias sobre relações entre humanos e relações dos humanos com o mundo vieram todas dos livros de ficção e poesia que li desde a pré-adolescência. O menino do dedo verde chamado Tistu me mostrou muito cedo que pessoas queridas como o jardineiro Bigode e o meu avô Bolão morrem (o meu avô Bolão merece um conto – ou um livro – só sobre ele). Desde que li esse livro e perdi o meu avô percebi que, diante da falta de clareza sobre quanto tempo temos aqui, é preciso conhecer as pessoas profundamente. A literatura me ensinou a ser curiosa sobre o universo das pessoas. Até hoje tenho uma lista de coisas que queria ter perguntado ao meu avô Bolão. Do que ele tinha medo? Por que ele voltou para a escola para terminar o ensino médio com 50 anos? Ele chegou a amar a minha avó? Por que ele era tão sozinho? Era solidão ou tristeza? Nunca pude fazer essas perguntas. Como não tive tempo de conhecê-lo, tento conhecer cada pessoa que faz parte da minha vida. Já fiz zilhões de perguntas assim aos meus pais, irmãos, cunhada e os amigos que adotei como irmãos pela vida. É com essa curiosidade que consigo enxergar as pessoas ao meu redor – o que, para mim, é condição para qualquer tipo de relação. O problema é que no mundo há quase ninguém interessado em enxergar o outro. Esse processo é desconfortável porque exige vulnerabilidade. Eu não posso reclamar: para além da minha família, enxergo muito bem um pequeno grupo de amigos com os quais falo quase todos os dias. No ano passado, o meu hábito de esporadicamente sentar para beber sozinha em bares me presenteou até com um encontro desse com estranhos. Fiz uma viagem à Coney Island e sentei para tomar um mojito em um bar perto dos parques de diversão. Conversei com o homem à minha esquerda, que por algum motivo sabia tudo de cinema (depois descobri que ele tinha sido crítico de cinema do The New York Times), e o homem à minha direita, que era eleitor de Donald Trump e tinha o sotaque do nova-iorquino italiano. O homem do meio, o dono do bar, entrou na conversa (ele é casado com uma brasileira e conhece até o Lenine). Não sei bem quantas horas passei ali ou quantos mojitos eu tomei. Mas saí de lá com o meu universo mais expandido e bonito: consegui enxergar bem três estranhos em uma tarde de sexta-feira. De resto, olho para as pessoas como se elas fossem alienígenas. Ou como se fosse eu a extraterrestre. Tudo é rápido e transacional. Tudo acontece na superfície. Tudo acontece a partir da perspectiva do eu e não da perspectiva do outro. O deslocamento é esse: vivo em um mundo em que a maior parte das pessoas perdeu o interesse no outro. A empatia com o outro. O cuidado com o outro. E no espaço que os outros ocupam também. Pareço uma vitrola quebrada, mas o fechamento da Livraria Cultura e do anexo do Espaço Itaú em São Paulo reforçou esse sentimento em mim. O desinteresse pelo cuidado com as relações individuais é magnificado e se transforma na falta de cuidado com as relações coletivas. Não sei se haverá invasão alienígena. Muito provavelmente não, o que significa que os seres humanos não serão substituídos por extraterrestres. Para piorar, talvez a sensação de deslocamento se acentue em mim com o passar da idade. Essa semana uma amiga me perguntou o que eu faço quando o deslocamento incomoda. Fui discutir isso com a minha mãe, que me incentivou a acreditar em algo. Religião não é algo que faça sentido para mim. Eu prefiro acreditar na arte, em especial na literatura, na poesia, na música, na dança e no cinema. Quem escreve livros o faz por curiosidade sobre o ser humano. A minha ponte com o mundo eu encontro ali.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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