Estava no aeroporto de Nova York quando li A Amiga Genial pela primeira vez. Nunca esquecerei a sensação de estranheza que senti quando pensei em Lila Cerullo desaparecendo do mundo aos 60 anos sem deixar registro de que existiu. Lila queria “volatizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse nenhum vestígio seu.” Não deixou nenhuma roupa, nenhum sapato. Todas as fotos sumiram. O seu computador também. O objetivo de Lila não era só desaparecer. Queria apagar toda a vida que deixara para trás, como escreve Ferrante. O que leva alguém a querer se pulverizar dessa maneira? Se você não leu a tetralogia napolitana, sugiro que pare de ler este texto agora, já que trato de spoilers. Escrevi sobre a força de Lila Cerullo em outro texto. Não me lembro de ter lido sobre outro personagem feminino tão extraordinário quanto Lila. A amiga genial é ela. Lila nunca foi escolarizada mas sempre demonstrou capacidade de aprender qualquer coisa muito facilmente. Quando está apaixonada por Nino Sarratore, Lila lê livros e em pouquíssimo tempo está pronta para desconstruir o que ele pensa. Quando decide se dedicar à programação com computadores, não demora muito para que ela aprenda tudo a ponto de saber mais do que o seu companheiro Enzo Scanno, que estudava o assunto há anos. Se tivesse frequentado a escola e a universidade (como Lenù), Lila teria escrito livros como os de Ferrante. A inteligência dela é natural, quase fluida (invejo esse tipo de inteligência – o aprendizado para mim vem com muito esforço). E Lila sabe sobre as coisas da letra e do mundo. Ela inverte a lógica de onde mora usando os problemas e os vícios que estruturam o bairro. Usa os irmãos Solara como quer ao longo da série inteira, tornando-se ela mesma a figura que mete medo em quem mora ali ao final da série. Lila é também a personagem mais curiosa dos livros. Ainda criança, escreve um livro ao qual Elena Ferrante (infelizmente) nunca nos dá acesso chamado La Fata Blu. O livro abre a cabeça mágica de Lenù, praticamente tornando-a escritora. Ao final da série, Lila também decide estudar a história de Nápoles e traz com ela Imma, filha de Lenù e Nino. Lila absorve o significado de cada parte da cidade e passa-o adiante para Imma como se aquele fosse o conhecimento mais incrível do mundo (e de fato é). As páginas em que isso acontece me deixaram maravilhada. Diante do tamanho de Lila, da imensidão que ela materializa em forma de ser humano, como explicar que ela decida desaparecer? Há sinais ao longo da série que ela sempre quis fazer isso. Por exemplo, Lila recorta e reconstrói uma foto sua com o vestido de casamento a ponto de não ser reconhecida. Ela frequentemente fala sobre como vivencia um processo chamado dissolving margins, no qual as bordas que definem as pessoas e as coisas vão desaparecendo (preciso escrever um texto só sobre isso). Para mim, Lila quer desaparecer porque deseja profundamente parar de ser fortaleza para os outros – para a sua família, para o seu marido, para as pessoas do bairro, para Lenù, para toda e qualquer pessoa que depende da força que ela emana para existir. O desaparecimento para ela é sinônimo de liberdade. Mas o estopim que faz com que ela concretize o seu desejo é o sumiço de sua filha, Tina, no final do último livro. É esse o episódio que abre o espaço definitivo para o seu desaparecimento. Tina desaparece e não há sinal do que aconteceu com ela. Se foi roubada, se morreu. O desejo ao qual me refiro acima – a vontade de desaparecer para não ser fortaleza para os outros – só não aparece com Tina. Até Rino, o primeiro filho de Lila com Stefano, depende da fortaleza de Lila. Tina não. Com Tina Lila é leve. O desaparecimento dela torna o desaparecimento de Lila obrigatório. Lenù desonra a memória de Lila ao contar a sua história na tetralogia napolitana. Tudo o que Lila queria era a não-existência e os livros fazem justamente o contrário: eternizam Lila como a fortaleza que ela nunca pediu para ser. Lila passou a ser a fortaleza de milhares de mulheres. Lila merecia mais, mas talvez esse seja o fardo de mulheres-fortalezas: elas precisam ser imortais para se tornar fonte de energia e força para outras pessoas. As mulheres-fortalezas carregam o mundo.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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