Tenho pensado muito sobre a minha família desde que a minha avó Odete se mudou de sua casa em Peruíbe para uma casa de repouso em São Paulo. Passei um mês em São Paulo entre dezembro e janeiro e pude visitá-la algumas vezes. Em uma dessas visitas, perguntei o que ela estava fazendo com tanto tempo livre. “Eu penso na minha vida”, ela disse. “Você pensa no vô?”, indaguei, ao que ela respondeu, “No seu avô e em tudo o que eu vivi”. Recebi a resposta dela com uma tristeza que não compreendi. Foi em busca de respostas para essa tristeza que peguei um calhamaço de fotos antigas e trouxe comigo para cá. São fotos da casa dela no Campo Limpo, de reuniões de família, de mim e do meu irmão do meio pequenos, do meu avô – muitas fotos do meu avô. Tenho passado manhãs e noites olhando para essas fotos e escrevendo sobre o meu avô. Ernesto Policicio era o nome dele, mas nós o chamávamos de Bolão por conta da barriga de chope (e ele então apelidou a minha mãe - que não tinha barriga de chope - de Bola). Meu avô era, na média, um sujeito quieto e solitário. Passava parte do tempo sentado no murinho da casa dos meus avós ouvindo jogo ou música sertaneja no seu radinho de pilha. A outra parte ele passava em um quartinho na laje que abrigava um barril de cachaça e tranqueiras (ninguém lembra o que eram). Às vezes, jogava dominó com o pessoal da borracharia em frente de sua casa. De vez em quando, ele perdia as estribeiras. Uma vez, o cachorro dele (Neco ou Zulim, o nome variava de acordo com o dia) foi atacado por outro na rua. Ele entrou fulo da vida em casa pronto para pegar uma arma. “Onde o senhor vai, seu Ernesto?”, meu pai perguntou. “Vou matar aquele cachorro filho da puta que atacou o Neco”, ele esbravejou. Ainda bem que o meu pai estava lá para evitar a tragédia canina. Outra vez minha mãe, ainda pequena, estava no banheiro tomando banho, e meu avô precisava fazer o número dois. “Ai meu deus do céu, ai minha virge maria, sai do banheiro, Bola!”, ele implorava na porta do banheiro, como se o mundo fosse acabar. Ele cultivava curiosidade sobre o mundo. Trabalhou como mecânico por anos, mas o desejo de ter um salário melhor fez com que ele se esforçasse para ser fiscal de feira da prefeitura de São Paulo. Tinha uma máquina fotográfica que usava para registrar a sua vida. Queria viajar com o passaporte que tirou na década de 90, inclusive para a Itália, de onde a família dele (complicadíssima, parte da qual se suicidou) vem. Voltou para a escola para completar o ensino médio aos 50 anos e terminou o supletivo cheio de orgulho. O lado doce dele poucos conheceram. Vovô comprou um gravador de fita cassete com microfone para eu e meu irmão cantarmos nas tardes em que ficávamos com ele. Vovô também gostava de Natal porque via magia nas músicas natalinas. Vovô se emocionava ao ouvir a música “No Woman, No Cry”, de Bob Marley. Vovô gostava de me ver comendo e dizer “mangia che te fa bene!”. Quando minha mãe teve o terceiro filho, vovô a acalmou: “filha, eu fico com o Tutu do jeito que fiquei com o Gui, você vai poder continuar trabalhando”. Não deu tempo de ele cuidar do Tutu. Um dia, a asma e a bronquite o levaram para o hospital. Voltou de lá branco, quase transparente. Colocaram-no para dormir na sala da casa dos meus avós. Ali, ele me chamou e pediu gelatina colorida. A última imagem que eu tenho dele é esta: eu aos nove anos com os meu braços pequenos e finos entregando um copo de sobremesa com gelatina colorida para ele. Nunca mais o vi. Um dia ele existia, no outro deixou de existir, e eu fiquei aqui, nessa terra, sem o avô que eu tanto curtia ter. Em uma das fotos que eu trouxe comigo, estou comendo bisnaguinha e bolacha Maizena enquanto ele lê o jornal na sala da casa dos meus pais. Não sei dizer quantas horas já passei olhando para essa foto. Ontem, olhando bem para ela, tentei decifrar o meu avô: as frustrações que as linhas do rosto dele escondiam; o gosto pela solidão (será que é hereditário?); a relação dele com a bebida; o casamento aos trancos e barrancos com a minha avó; a inquietude que ele carregava mas não mostrava; o sentimento dele em relação à própria família; o significado de ser pai de dois filhos (minha mãe e meu tio) tão diferentes; e a expectativa dele para o futuro para além de morar na beira da praia. Só então entendi a tristeza que senti quando ouvi a minha avó na casa de repouso: ao contrário dela, que permanece viva até os 84 anos, o meu avô não teve a oportunidade de pensar sobre o que viveu. Ele deixou de existir subitamente aos 65 anos, e com a sua ida, apagou-se a sua trajetória sem que ele pudesse pensar sobre ela. Por isso eu trouxe as fotos de família comigo. Por isso eu escrevo sobre ele. Lá de cima, vovô está pensando sobre o que viveu através de mim.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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