Duas histórias contadas por Martha S. Jones em seu novo livro Vanguard – How Black Women Broke Barriers, Won the Vote and Insisted on Equality for All são emblemáticas sobre a dificuldade encontrada por mulheres negras obter direitos políticos ao longo da história norte-americana. A primeira aconteceu em 1908, quando Mary Church Terrell se tornou a primeira mulher negra a participar da convenção feminista de Seneca Falls, em Nova York. Terrell foi convidada a ocupar o lugar do abolicionista Frederick Douglass, até então o único representante negro do primeiro movimento sobre os direitos políticos das mulheres do país. A segunda ocorreu em 1965, quando o presidente Lyndon B. Johnson assinou a Lei de Direito ao Voto, tornando ilegais as práticas eleitorais discriminatórias decorrentes da segregação racial. Diversos ativistas participaram da cerimônia de assinatura da lei (incluindo Martin Luther King Jr.), mas não há registro de participação de Diane Nash no evento. Nash foi a principal organizadora da famosa marcha de Selma (junto com seu marido, James Bevel), que culminou na assinatura daquela lei. O livro pode ser definido como um inventário das trajetórias das mulheres negras marginalizadas na luta por direitos políticos tanto por mulheres brancas (no movimento feminista) quanto por homens (no movimento negro). Diversos exemplos ilustram essa marginalização dupla. A começar pela resistência dos movimentos abolicionistas negros em reconhecer as reivindicações femininas por direitos políticos ao longo do século 19 – “muitos ainda insistiam que raça e gênero eram questões separadas e deveriam ser tratadas em movimentos separados”, escreve Jones. Ao longo desse período, as mulheres negras se uniram em organizações comunitárias e de direitos civis, igrejas e instituições abolicionistas. “Nesses espaços divididos com homens surgem questões sobre qual tipo de poder e autoridade as mulheres podem reivindicar e de que podem desfrutar”, explicou a autora em conversa que tivemos no início de outubro. A primeira organização de mulheres negras só apareceu em 1896, com a criação da National Association of Colored Women. Vale lembrar que, em 1870, a 15ª emenda constitucional havia garantido o direito ao voto aos homens negros. A luta das mulheres negras por direitos políticos também esbarraria no movimento sufragista levado a cabo por mulheres brancas. Houve diversas tentativas de aproximação entre os movimentos feministas. Um exemplo: em 1865, as ativistas Sojourner Truth (negra) e Laura Haviland (branca) pediram um táxi nas ruas de Washington, DC. O motorista machucou o ombro de Truth para impedir a entrada dela no carro. Ainda indagou se Haviland era a “dona” de Truth. O episódio deixou claro que Truth e Haviland não eram iguais como mulheres. As duas levaram o caso para a Justiça, que emitiu decisão favorável à Truth. “O processo deixou a cidade sob aviso: mulheres negras sabiam como revidar no sistema judiciário quando eram abusadas fisicamente”, escreve Jones no livro. Jones intitula o capítulo sobre a 19ª emenda constitucional, que deu o direito ao voto para as mulheres há 100 anos, apenas como “emenda”, já que o direito ao voto só foi totalmente estendido às mulheres negras em 1965. Um trecho interessante do livro descreve o compromisso entre o movimento feminino sufragista e parlamentares racistas para a aprovação da 19ª emenda. “O racismo corria solto em organizações como a National American Woman Suffrage Association (NAWSA)”, escreve Jones no livro. Depois da ratificação da emenda, as leis de Jim Crow ainda estavam em voga no sul. Ao mesmo tempo, instituições como a NAWSA consideraram seu trabalho em prol do sufrágio feminino como completo. Ao final da nossa conversa, Jones lembra que a supressão ao voto permanece como um dos maiores desafios atuais da democracia norte-americana. Em 2013, a Suprema Corte do país invalidou parte da Lei de Direito ao Voto de 1965, dando liberdade a nove estados no sul do país para mudar suas eleitorais sem aprovação do governo federal (a decisão ficou conhecida como Shelby County v. Holder). Desde então, a sociedade civil vem pressionando congressistas a adotar legislação que reverta a decisão. Em dezembro de 2019, a Câmara dos Deputados do país aprovou uma proposta de lei com esse objetivo. Não houve esforço para aprová-la no Senado desde então. Leia mais sobre a minha conversa com Martha S. Jones na BBC Brasil.
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AuthorBeatriz Rey is a political scientist and a writer based in Washington, D.C. Archives
February 2023
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